terça-feira, 18 de agosto de 2020  06:59

O que Dom Casmurro nos ensina




Lições de educação financeira tiradas de um clássico de Machado de Assis

Li pela primeira vez Dom Casmurro, como muitos, na adolescência. Experiência cruel na minha opinião, pois a falta de repertório da época, me fez gerar certa resistência a literatura. Era enfadonho o expediente de ler obras das quais pouco proveito tirava. Era mera obrigação escolar. Passados os anos, resolvi reler muitas das obras dos escritores brasileiros, e com maturidade suficiente, entendi quem era Machado de Assis. Veio, portanto, a paixão tardia. Mas o próprio Machado cita em sua obra “melhor naturalmente cedo do que artificialmente tarde”, digo que no meu caso foi melhor naturalmente tarde do que artificialmente cedo.

E eis que relendo a obra, um trecho logo de início me prendeu a atenção, pois traz o trauma financeiro de Pádua, pai de Capitu:

  • “o administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Essa mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem, era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se nas despesas supérfluas, deu joias à mulher, nos dias de festa matava leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dous meses na suposição da eterna interinidade.”

Pádua representa muitos brasileiros que, ao serem confrontados com o aumento da renda, de pronto aumentam seu padrão de gastos. Além disso, distorcem o conceito de investir ao associarem gastos com carro, educação dos filhos e viagens, por exemplo, como investimentos. Assim como Pádua, muitos acreditam na "suposição da eterna interinidade". Ou seja, consideram apenas o contexto presente em suas decisões econômicas futuras. Tal "vertigem" coloca boa parte das pessoas em absoluta vulnerabilidade financeira

Dom Casmurro nos ensina, portanto, que a realidade financeira atual de qualquer indivíduo é interina. São muitas as questões que podem impactar a renda, e ela tende a ser variável de menor controle em qualquer orçamento. Sua estabilidade dependerá sempre de um terceiro – do cliente, do chefe, do rendimento do investimento – ou de o administrado ter ido ao norte. Já os gastos têm controle mais previsível, pois depende, em larga medida, das escolhas individuais.

Mas o pai de Capitu aprendeu a lição. Depois de viver o luto da falência, e vencer o que impunha a vaidade social, passou a lembrar-se com orgulho dos tempos de administrador. Pode contar os feitos dos vinte e dois meses por muitos anos ainda. A ele coube apreciar o “sabor póstumo das glórias interinas.”

Autor: Ana Leoni

Fonte: Valor Investe